sábado, 8 de outubro de 2011
A escolha da razão como princípio norteador para a vida, ao alcançar o ápice da negação aos caminhos extremamente limitadores da religião, revela-se verdadeiramente fascinante. Neste processo as perspectivas e olhares lançados ao mundo, antes dominados por certezas sem sentido e presos a princípios absolutos de um ser divino, ganham novas significações, trazendo um sentido real para o ser.
Como que despertando de um longo sono com sonhos estranhos e vazios, a mente do religioso amedrontado pelo pecado, pelas punições e pressões perpetradas por sua própria fé, vislumbra um sentimento de perene liberdade. Tal momento é sempre marcado por um renovar de atitudes e reflexões únicas, capazes de apontarem caminhos promissores em busca da satisfação plena e realização pessoal.
De fato isto ocorre. Por experiência própria, tenho a dizer que somente ao dar às costas à fé da qual era cativo e oprimido fui capaz de situar minha condição existencial em um contexto real. Tão somente por não ser baseado em crenças inúteis, certezas que causavam isolamento e promessas inverossímeis, tal contexto vestiu-se de um tom de completude e auto-sustentação mediante à existência.
Após uma profunda vivência religiosa, marcada por uma infância com o juízo de valores baseado no terror dos conceitos de pecado e punições divinas, na vida adulta consegui romper com o encanto e ilusão da fé. Como católico e, posteriormente, como protestante, provei de todos os venenos, mentiras, falsas explicações, consolo contraditório, paz enganosa e, mais que tudo, com o sofrimento de uma submissão aos desígnios apontados como vontade de Deus.
Sinto-me aliviado sem o peso de Deus sobre minha consciência. Trazendo da memória as lembranças olho e tudo e me pergunto como me permiti a tamanha castração pessoal, obediência e auto-punição em nome da fé que, na busca de uma purificação de máculas que me foram inculcadas, era a representação da inocência e culpa, além de um desejo sincero de reparação. É exatamente isto que explora a fé. A falsa necessidade de redenção é um precipício onde vidas se esvaem por nada… onde minha própria vida por anos afinco escorreu ao ralo de sandices e inutilidades que só trouxeram prejuízos.
Se a razão me dá asas que me permitem voar sem medo da vida, medo de Deus ou do inferno, lamento dizer que ainda há muita dor a ser vivenciada, de modo que, não querendo ser pessimista, mas racional, ao cético está reservada uma parcela significativa de augúrios que carece de extrema e profunda reflexão.
Num mundo onde a crença irracional ainda impera, restam aos que escaparam da religião um cenário de perseguição constante criado por pessoas ainda cegas à fé. Não evidencio aqui as perseguições extremas, agressões físicas ou morais – ainda que elas existam, claro – , mas as sutis marcas do preconceito que pouco a pouco podem corroer pessoas brilhantes, destruindo-as ou castrando sua felicidade.
Costumam dizer que sou alguém pessimista quando traço reflexões sobre a vida, e isto parece ser a lógica de minha retórica, mas, insisto, trata-se de uma perspectiva realista e, considero eu, necessária aos que decidem seguir seu caminho em direção oposta à fé.
Existe dor na descrença. Não a dor de um suposto vazio que cristãos insinuam haver nos ateus ou agnósticos, mas os espaços cada vez mais distantes e cinzentos em relação às pessoas amadas que, imbuídas de suas máximas religiosas, causam isolamento e ferem os seres humanos.
Grandes amigos partiram e me viraram as costas quando deixei de ser católico e abracei o protestantismo. Familiares me ignoraram, me olharam com desprezo e me ofenderam com silêncio ou palavras, que nem sempre agressivas, carregavam em si uma nódoa amarga e viscosa. Era o prelúdio do que voltaria a ocorrer.
Hoje, abandonando definitivamente o cristianismo, vejo olhares atravessados de medo, angústia, repulsa e distância. Quando não visto como alguém diabólico, sou tido como um pobre coitado que se deixou perder de Deus nas filosofias humanas; perco o respeito de pessoas amadas e queridas não por ter feito algo que ferisse a ética e honestidade, mas por simplesmente ter deixado de crer nos mitos e mentiras cristãs que feriam minha inteligência e tolhiam minha liberdade de pensamento. Resta-me lamentar por tais pessoas e prosseguir, construir minha felicidade, ainda que eu gostasse elas estivessem ao meu lado para compartilhar as alegrias e mazelas da vida.
Muitas pessoas vivem tais dilemas. Há casos de casamentos destruídos, famílias divididas, empregos perdidos ou abandonados, amizades estremecidas ou destruídas, depressão. Nesta trama nefasta, infelizmente, há alguns que se permitem até ao ato desesperado do retorno à religião – ainda que falso – para não se verem sob a frieza de olhos punitivos e vítimas de um isolamento das pessoas que ama. Quem os culpa? Creio que somente os tais sabem dos preços de suas escolhas e da própria culpa por terem que se calarem ou ocultarem aquilo que de fato os move.
Há dor na descrença. Não como a dor autoinfringida da religião, que urge de dentro para fora, mas algo construído externamente em nome daquela mesma fé que o descrente acabara de deixar por saber que ela não lhe fazia bem à razão, aos sentimentos ou a ambos.
Que estas palavras possam servir como alento e caminho de reflexão para os que decidiram abandonar sua fé ou religião e veem-se sob as torturas e apelos de pessoas ainda presas a tais absurdos. Por mais difícil que seja conviver com este dilema, a vida ainda pode ser bela, pode ser intensa, compondo uma melodia que une este misto de liberdade aos lamentos do percurso. Mas isto é algo que dependerá de nós mesmos nesta sina existencial, onde a reflexão será o caminho para compreensão dos que nos odeiam porque não conseguem a plenitude pessoal sem um controlador nos céus, sem um espaço ilusório para preencher a fissura da ignorância há em seus corações.
O autor:
Edward de A. Campanário Neto é agnóstico, existencialista e grande admirador das artes como um todo. Formado em Pedagogia, especialista em educação e graduando em História. Após anos de fervorosa vivência cristã como católico e, posteriormente, como protestante, deixou definitivamente suas crenças religiosas num ato de liberdade em busca da razão, que considera um fundamento sólido para o crescimento individual e superação das mazelas sociais através de um humanismo existencial
Veja mais:
http://sociedaderacionalista.org
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